sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

1964 - UM POEMA


A um dos posts abaixo, dei o título de Eram mais de dez para narrar, principalmente, o lado cômico-patético da invasão da nossa casa após o golpe militar de 1º de abril de 1964.

Esse foi o título de um poema escrito por papai depois de 58 dias de cadeia. Retrata bem o primeiro estágio da repressão, com perseguição generalizada, aparentemente sem muita organização, mas que visava paralisar a sociedade; gerar um medo coletivo; inibir a mais pálida contestação.

Nessa perseguição cabiam figuras como o morador de rua Chico de tal, um dos companheiros de cela de papai no Dops. O pobre Chico, analfabeto e com visíveis problemas mentais, resolveu ganhar uns trocados com uns livros que encontrou na rua ... e deu-se muito mal.

Se a perseguição era generalizada, a tortura, ainda não. Existia, sim, como a praticada contra Gregório Bezerra, arrastado em carne viva pelas ruas de Recife, contra camponeses e operários e contra pessoas como o Chico. Mas eram, digamos, “bolsões” de brutalidade. Cinco anos mais tarde, a tortura compunha um método científico e institucional de terror e massacre dos que formavam a resistência à ditadura.

Mas voltemos a 1964 e à prisão de Mário Lago, como ele narrou no poema:


E ERAM MAIS DE DEZ

Me invadiram a casa toda
(e eram mais de dez)
Me viraram tudo nela
(e eram mais de dez)
Me cercaram o edifício
(e eram mais de dez)
Me impediram o elevador
(e eram mais de dez)
Me esvaziaram a calçada
(e eram mais de dez)
Me pensando de dar tiro

E eram mais de dez, e eram mais de dez, e eram mais de dez, de dez.

Me meteram em tintureiro
(e eram mais de dez)
Me levaram para o Dops
(e eram mais de dez)
Me enfiaram numa lancha
(e eram mais de dez)
Me largaram numa ilha

E eram mais de dez, e eram mais de dez, e eram mais de dez, de dez.

Juntou dia atrás de dia
(e eram mais de dez)
Quando fez cinquenta e oito
(e eram mais de dez)
Me voltaram para o Dops
(e eram mais de dez)
Me botaram numa sala
(e eram mais de dez)
Me sentaram e perguntaram
“O senhor sabe por que a polícia o prendeu?”


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