quarta-feira, 9 de maio de 2012

QUEM SABE DE POVO É JOÃO


Acabei de assistir ao programa Samba na Gamboa - imperdível atração das noites de terça-feira da TV Brasil, apresentada pelo Diogo Nogueira - em homenagem aos 70 anos de seu pai, o mestre e espelho João Nogueira. Chorei muito. Somos uma família de fãs do João. E é muito bom sabê-lo sempre reconhecido, como na boa notícia de que está em curso a produção do Sambabook em homenagem a ele (Saiba mais em  http://www.sambabook.com.br/joaonogueira/. Alvíssaras!)
Mário Lago era o chefe dessa claque. Considerava Poder da criação (da excepcional safra de João Nogueira com Paulo César Pinheiro - http://www.youtube.com/watch?v=UUJlXn3DpiY) peça antológica do cancioneiro brasileiro, com o que todos os Lago concordamos.
Coincidência, já vinha preparando a postagem de uma história curiosíssima de papai e João, ocorrida lá pelos idos da década de 1980. Papai andava meio sensaboroso da vida, quando João lhe sacolejou a existência. Foi surpresa da boa, como vocês podem perceber no relato que Mário Lago fez desse encontro:
Aos 70 anos, pensei que não pudesse aparecer mais nada de novo. Já tinha passado por todos os caminhos, vividas não sei quantas experiências. Ao lado da mulher, filhos e netos permitia-me ser espectador da vida, assistindo a um jogo de futebol do último degrau das arquibancadas, que, dali, o campo se oferece inteiramente aos nossos olhos. Foi quando o Osvaldo Loureiro surgiu com uma proposta inquietante:
– Eu vou dirigir um Seis e Meia, no João Caetano, e estou pensando juntar você e o João Nogueira.
Positivamente, tinha havido alguma coisa muito séria no equilíbrio do sistema planetário. Com toda certeza, os marcianos haviam invadido a terra e um deles conversava comigo numa língua que eu não conseguia entender.
– Você está louco, Osvaldo? Eu, no João Caetano, fazendo dupla com o João Nogueira. Que é que eu vou fazer lá?
– O mesmo que ele, ué.
– Cantar?
– Você é compositor, homem de teatro e televisão, poeta, sabe coisas da história da cidade. Não tem obrigação de cantar como o Francisco Alves. Topa?
– Bem, eu... você compreende... se for... topo.
Eu disse que topava porque já tinha entrado em órbita, e em órbita continuei durante as reuniões para selecionar o repertório, escolher o melhor tom das músicas. Dali para a frente, eu não me preocupava mais com o que pudesse acontecer. Tinha entrado num ritmo de doideira, melhor era ir até o fim. 
 E o espetáculo não me deu o menor motivo de queixa. Foi um agrado em cheio, com alguns momentos emocionalmente gratificantes. Quando cantei Nada além, por exemplo, uma música de 1937, todo o público que lotava o teatro fez coro comigo. Depois, eu dizia uns versos contra a bomba atômica, versos feitos para uma possível música que nunca chegou a acontecer. Mas se tornaram ponto alto do espetáculo, aplaudidos a mais não poder, com palmas até no meio da declamação. 
E chegou a sexta-feira que encerrava a temporada, recebi a parte que me competia... agora, podia voltar para o alto da minha arquibancada, continuar a ver o jogo da vida de um lugar onde não me chegasse nenhuma sobra de discussão violenta. Mas sobrou. O Albino Pinheiro resolveu levar o show para a praça pública: domingo, 7 horas da noite, Praça General Osório (Ipanema/ Rio de Janeiro). Nada menos do que isso. A coisa era apresentada em termos tão delirantes, que eu acabei concordando. 
Mas, na hora de começar o show, confesso que amarelei e disse pro João Nogueira:
– Aqui, eu não vou dizer aquele poema, não.
– Não vai dizer, por quê?
– Já viu a zoeira que há nesta praça, cara? É pessoal da feira desmontando as barracas, rapaziada chegando da praia, ônibus passando, turma de pote cheio... Quem é que vai ter saco pra ficar ouvindo poesia?
– Eu acho que o espetáculo tem que ser igualzinho ao do teatro. Garanto que o poema vai agradar.
– É, mas não vou dizer, não. De jeito nenhum.
E começou o show. A praça estava exatamente como eu tinha imaginado – abarrotada, mas com o burburinho de quem não está num teatro. À medida que as músicas iam sendo apresentadas, a coisa melhorava, o público cantava junto com a gente, alguns aproveitavam para dançar... Aí, chegou a vez de eu cantar Nada além.  A reação foi a mesma da que no João Caetano; toda a praça entrou na cantoria. Depois desse número, seria o poema, mas eu já tinha combinado com chefe da orquestra que, do Nada além, pularia para Amélia. Aí, ouvi a voz do João Nogueira bem na minha nuca.
– Se não disser o poema, eu arranco o microfone da stua mão, anuncio e, aí, você é obrigado a recitar.
A maneira do João falar não deixava espaço para muita argumentação. Era daquelas que querem dizer “ou dá ou desce”. Pausa entre um número e outro não podia haver, porque isso escangalharia o ritmo do show. O jeito foi despejar o pote, a princípio com a voz insegura, esperando uma vaia a qualquer momento. 
Amada, não me censure,
se sou de pouco falar,
nem se esse pouco que falo
não faz você suspirar.
É tempo de vida feia,
de se morrer ou matar,
de sonho cortado ao meio,
de voz sem poder gritar,
de pão que pra nós não chega,
de noite sem se acabar.
Por isso não me censure,
se sou de pouco falar.

Criança é bonito? É.
Mulher é bonito? É.
A rosa é bonito? É.
A lua é bonito? É. 

Mas criança chega a homem, se a bomba quiser,
a mulher só tem seu homem, se a bomba quiser,
homem sonha e faz seu sonho, se a bomba quiser.
Não é tempo de ver lua
nem tirar rosa do pé.
A essa altura a galera já estava começando a fazer silêncio, muita gente se aproximava do palco para ouvir melhor. Até o barulho dos ônibus como que tinha diminuído. E a voz ganhou mais coragem.
Amada minha, não chore,
se nunca falo de amor,
nem se meu beijo é salgado,
que é beijo chorado em dor.
É tempo de vida triste,
de olhar o céu com pavor,
de mão pro último gesto,
de olhar pra última flor,
do verde, que era esperança,
trazer desgraça na cor.
Por isso, amada, não chore
se nunca falo de amor.

Criança é bonito? É...
O silêncio agora era realmente total. Tinha chegado mais gente, talvez por causa daquele velho que falava. A aglomeração em volta do palco era ainda maior. E o João Nogueira ria de orelha a orelha, como se dissesse “eu não disse que ia dar certo, professor?” O resto foi sem sentir.

Amada, não vá embora,
se eu trouxe desilusão,
se aumenta sua tristeza,
tão triste é minha canção.
É tempo de fazer tempo,
de pegar tempo na mão,
de gente vindo no tempo
em passeata ou procissão,
no mesmo passo de sonho
pra bomba dizendo “Não!”
Amada, não vá embora,
mudou a minha canção.

Criança é bonito? É.
Mulher é bonito? É.
A rosa é bonito? É.
A lua é bonito? É. 

Pois criança vai ser homem, porque a gente quer,
a mulher vai ter seu homem, porque a gente quer,
homem vai fazer seu sonho, porque a gente quer,
vai ser tempo de ver lua
e tirar rosa do pé.

A reação, felizmente contrariando meus pressentimentos, foi de agrado geral, como no teatro. Enquanto o pessoal aplaudia, o João Nogueira cochichou no meu ouvido:
– Pra entender essa transa de povo, eu sou mais eu, professor.
Nova surpresa
Anos mais tarde, João Nogueira sacudiria novamente a existência de papai com uma parceria inesperada. Quer saber dessa, clique aqui http://www.youtube.com/watch?v=c5YYVHmrGEw
No Samba da Gamboa em homenagem a papai, Chamon conta pra Diogo como foi essa história e o belo samba que rendeu. Está na altura dos 36 minutos. Mas eu, se fosse você, curtia o programa inteiro.

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