segunda-feira, 6 de agosto de 2012

UMA CANÇÃO, UMA ESTÓRIA E UMA FRASE

Em 1985, Mário Lago contou alguns causos em seu livro Meia Porção de Sarapatel, uma coletânea de estórias, poemas, frases, poemas e exercícios de pensar.
Hoje, deixo pra vocês uma estória e uma frase.
Ah!, deixo também uma canção, recomendação do Mariozinho para o dia de hoje: Foi, de Adauto Santos e Mário Lago - http://www.youtube.com/watch?v=YJFjn7NtGkA

A estória:
O homem que inventou essa história de organização merece uma estátua bem no centro do mundo, toda em ouro, platina e brilhantes. A esse monumento deviam ser feitas anualmente romarias mais concorridas do que as feitas a Fátima, Juazeiro do Padre Cícero, Meca, Jerusalém e outros quaisquer pontos de concentrações religiosas.
E olhem que eu nem sou a pessoa mais indicada para dizer uma coisa dessas, pois sempre me orgulhei da condição de irresponsável bagunceiro para manter livros arrumados, roupa no cabide certo, seja lá o que for. Mas que maravilha se poder encontrar, mesmo depois de apagadas todas as luzes do mundo, o livro que se estava lendo na véspera, pois ele estará, sem a menor possibilidade de erro ou hesitação, na segunda prateleira da estante, terceiro a contar da direita. Os copos são sempre colocados no lado esquerdo do armário, em fila indiana, os de uísque entre os de água e as tulipas para a cerveja. A sandália que adere ao pé como se fosse pele não muda nunca de lugar: entre um par de sapatos sociais e um par de tênis. Maravilha das maravilhas!
Mas, às vezes, esse excesso de organização causa dificuldades quase intransponíveis, constrangimentos que a bagunça por certo não traria. Uma noite, em Moscou, por causa desses excessos, quase fiquei sem jantar.
Era novembro de 1957, período de festas comemorando o 40º Aniversário da Revolução Bolchevique. De um momento para outro, a cidade explodiu demograficamente por causa das delegações partidárias, convidados, jornalistas etc. Praticamente a população de vários países ocupando o espaço dos habitantes de uma cidade, embora cidade grande. Evidentemente, tudo precisava ser muito bem organizado, principalmente nos hotéis, todos eles lotados do hall ao último andar. No Hotel Ucrânia, onde eu estava hospedado, por exemplo, nunca se passava por uma dependência sem encontrar no mínimo dez chineses.
Os serviços de almoço e jantar deviam ser cuidadosamente controlados. Assim, no jantar de hoje, a gente encomendava o que ia ter vontade de comer no café da manhã e no almoço do dia seguinte; no café da manhã do dia seguinte, resolvia-se qual seria o prato comido com mais prazer na hora do jantar.
A praça dos tombos de Mário Lago
Convidado pelos colegas da Rádio de Moscou, um dia saí cedo do hotel e tomei o café da manhã na cantina da própria rádio. Ali, também almocei e, depois, fomos visitar o Museu do Kremlin, o túmulo de Lenine, o magazine Gum. Esticamos as pernas pela cidade, o que me deu chance para sete maravilhosos tombos no Parque Pushkin, pois, muito do brasileiro, arrisquei-me a caminhar na neve com os sapatos que tinha levado daqui e, a todo instante, eram escorregões que faziam a alegria da garotada que estava no parque brincando de esquiar. À noite, fui ao Bolshoi e, quando voltei para o hotel, quis jantar.
Aí, começou a inana.
– Desculpe, mas não podemos servir.
– Como?
– O senhor não escolheu o cardápio para o jantar.
– Ah, é mesmo. Eu não tomei o café da manhã nem almocei aqui no hotel... Mas isso não é problema, eu pago o jantar.
– Não podemos receber.
– Como não podem?
– O senhor é convidado para os festejos, não pode pagar a refeição.
– Ah, sim... mas isso também não é problema. No jantar de ontem ,eu encomendei o almoço de hoje, não foi?
– Sim.
– Então, traga o que eu encomendei para o almoço. Que tal a ideia?
– Não podemos servir o cardápio do almoço.
– Ora essa...
– Agora estamos na hora do jantar, as contas do almoço já foram encerradas.
Aquela conversa ameaçava transformar-se numa dízima periódica. O garçom não abria mão do regulamento, minha fome não permitia que eu fizesse concessões. Nunca chegaríamos ao acordo ideal de um número inteiro. Felizmente, apareceu o Volódia, um dos gerentes, siberiano de quase dois metros de altura, engolidor de duas garrafas de conhaque por noite sem o menor desequilíbrio de gestos nem vermelhidão de rosto. Ele tinha trabalhado alguns anos na Embaixada da União Soviética no Uruguai, conhecia como a palma da mão essas turbulências meio anarquistas da sud-americanidad, no dizer do Silveira Sampaio. Calmamente, mostrou ao garçom a maneira de melhor resolver toda aquela embrulhada.
– O camarada paga o jantar, nós lhe damos um documento declarando que esta refeição foi paga. Amanhã, ele recebe de volta o dinheiro que vai pagar hoje e nos dá um recibo de quitação. É apenas uma troca de documentos. Tão simples.
A frase:
O que atrapalha a vida são os sinais de trânsito.


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