PS: em memória de Iramaya Benjamin, mãe dos nossos amigos Cid, Léo e Cesar, "mãe" do Manuel (quando ele estava preso, sem visitas, massacrado, Iramaya furou o confinamento apresentando-se como sua mãe, levando solidariedade e conforto ao Manuel) e uma das principais lideranças femininas na luta pela Anistia e contra a ditadura.
“Mil dos que amei vi tombados
de outros, nem pude saber.”
Mais célebre das fadistas de Portugal, Amália Rodrigues (http://www.portaldofado.net/#/content/view/850/249/) tinha especial ligação com o Brasil, onde conheceu o segundo marido, César Seabra, com quem viveu até a morte dele. Uma da muitas temporadas da cantora em nosso país foi em 1972, para gravar o disco Um Amor de Amália, ao vivo, no Canecão.
No Brasil de então:
> Mário Lago escrevia o livro autobiográfico Na rolança do tempo, um passeio não só por sua vida como pela historia do país na primeira metade do século XX. Finalizava o samba Salve a preguiça, meu pai, lançado no ano seguinte por Beth Carvalho (neste vídeo mais do que caseiro http://www.youtube.com/watch?v=czOdAS7n1g0, é a terceira música do potpourri, na interpretação de Neguinho da Neija-Flor). Na TV, participava dos especiais O matador, de Oduvaldo Viana Filho; O dicionarista, de Marcos Rei, e Dama das camélias, de Gilberto Braga e Oduvaldo Viana Filho. Mas seu maior sucesso do ano seria o personagem Sebastião (foto abaixo), na novela Selva de pedra, da amiga Janete Clair.
> A pista de Interlagos (SP) entrava para o circuito da Fórmula 1 com uma prova fora do campeonato, vencida pelo piloto argentino Carlos Reutemann. Líder da corrida durante quase todo o percurso, o brasileiro Emerson Fittipaldi rodou e parou pouco antes do final. A compensação veio em 10 de setembro, quando Emerson conquistou o primeiro título mundial de Fórmula 1 do Brasil.
> Começava a era das cores na televisão brasileira. A primeira grande transmissão foi a Festa da Uva, no Rio Grande do Sul.
> O crescimento econômico beneficiava poucos. Vigorava a tese de que era preciso “fazer o bolo crescer para, depois, repartir”. Aumentava a desigualdade social e a dívida externa.
> De desastre aéreo, morria a atriz, vedete e libertária Leila Diniz.
> Caetano Veloso voltava do exílio, lotando shows no Rio, São Paulo, Recife e Salvador.
> O Exército iniciava as operações contra a guerrilha do Araguaia (http://www.memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/multimidia/araguaia/mapa_01.swf), movimento organizado pelo PCdoB e que, no auge, aglutinou cerca de 100 guerrilheiros e simpatizantes (moradores da região). Levou dois anos até ser massacrado por um exército de 10 mil soldados, com a ordem de matar, mesmo os presos. Até hoje, estima-se que 60 corpos de guerrilheiros continuam desaparecidos. Apenas dois - Maria Lúcia Petit e Bergson Gurjão Farias - tiveram seus restos mortais encontrados, identificados e sepultados.
> Engordava a lista de mortos e desaparecidos pela repressão política, passando a incluir mais 56 militantes políticos de oposição à ditadura. A maioria tinha entre 20 e 35 anos. Entre eles, coisa que a gente só saberia tempos depois, figurava um amigo de infância dos filhos de Mário Lago - Paulo César Botelho Massa, dono de lindos olhos azuis, namorado da Ciça e amigo do Mauro (Ciça e Mauro, junto com a Tai, formavam o trio de meus melhores amigos, filhos do casal Naldir e Zilma Laranjeira Lima Baptista, que me aturaram todos os dias de muitos anos da infância e adolescência e ajudaram a tornar menos duros os anos de chumbo).
Fontes:
http://www.torturanuncamais-rj.org.br/ e http://www.documentosrevelados.com.br/
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Uma noite, após o espetáculo, Amália Rodrigues foi com a trupe ao restaurante Fiorentina, no Leme, parada obrigatória de todos os artistas locais ou em visita ao Rio. Mário Lago tinha mesa cativa por lá. O encontro dos dois foi marcado pela pergunta da cantora: “ó, Mário, tem feito versos?”.
Na noite seguinte, Mário convidou o xará e caçula Mariozinho para uma caminhada pela praia que os levou ao hotel Copacabana Palace, onde Amália estava hospedada. Na recepção, deixou um bilhete manuscrito e rimado para a fadista:
À cantora Amália Rodrigues, que me perguntou se tenho feito versos:
"Dos meus salvados do incêndio,
um grande abraço escolhi.
se alguém o descobre, prende-o...
Amália, leva-o pra ti!"
Junto com o bilhete, ia uma braçada de rosas e o poema
QUE VERSOS POSSO FAZER?
Poesia é instante de lua
ardência de amanhecer.
a morte saiu à rua ...
Que versos posso fazer?
Mil dos que amei vi tombados
de outros, nem pude saber.
Lares em pranto, fechados ...
Que versos posso fazer?
Janela aberta é suspeita,
pois pode o vento trazer
a voz de quem nos aceita ...
Que versos posso fazer?
Ao mar puseram mordaça
pra que não tenha a dizer
o quanto já viu de desgraça ...
Que versos posso fazer?
O sol foi posto entre grades
e o ar já querem prender;
perigo tais liberdades ...
Que versos posso fazer?
O eco do grito demora
com medo de responder.
É século de hora em hora ...
Que versos posso fazer?
Robôs em susto, de joelhos,
proibidos de estar ou de ser.
Barreiras, sinais vermelhos ...
Que versos posso fazer?
A vida é vida levada,
mataram o sal do viver,
aalma é terra arrasada ...
Que versos posso fazer?
Andamos estrada escura,
gado pra além se abater,
cabeça baixa é a postura ...
Que versos posso fazer?
O gesto é o jeito do açoite,
a voz é a vez de morrer,
de tudo fizeram noite ...
Que versos posso fazer?
Mas, apesar dos pesares,
um novo dia vai nascer.
Então direi, se indagares,
Que versos posso fazer.