quarta-feira, 30 de maio de 2012

MÁRIO LAGO, SEMPRE PRESENTE

10 anos. Por volta de 7 da noite de 30 de maio de 2002, papai encerrou uma vida que durou pouco mais de 90 anos. Deixou muita saudade e um enorme legado.

Ao lembrar a data, o blog oferece uma programação intensa e convida os seus leitores a viagens da alma:
> no tempo, para reencontrar Mário Lago, em entrevista para o programa Ensaio, que inclui sucessos como o samba É tão gostoso seu moço, dele e de Chocolate.

> pelo presente, ouvindo Marquinhos China em sublime e quase inédita interpretação da valsa Enquanto Houver Saudade, de papai e Custódio Mesquita. O vídeo registra uma homenagem a papai em show no Teatro João Caetano, em 2005. Na época, Marquinhos, que pouca gente imagina cantando valsa, disse que gravou pensando na mãe, tão apaixonada pela música e pela gravação de Orlando Silva, que nunca mais quis ouvir Enquanto Houver Saudade depois que Orlando morreu. É arrepiante. http://www.youtube.com/watch?v=mXutyC-CAwg

> sempre, ouvindo o programa Estúdio F, da Funarte, transmitido ontem pela Rádio Nacional, onde Mário construiu parte da sua carreira - http://www.funarte.gov.br/musica/estudio-f-mario-lago/

Deixo aqui, ainda, um texto que escrevi logo após a morte de papai. É o jeito de dizer que a saudade é imensa e que os saúdo sempre, a ele, mamãe, Kakalo, Vera, Alex e os muitos que amamos e vamos perdendo nessa roda inevitavel da vida. 

O “mais velhíssimo” se foi. Eu o chamava assim, como forma de homenagear a sua longevidade e de constatar que nós, os cinco filhos, também vamos ficando velhos (o caçula é careca e beira os 50). Em um país onde a perspectiva de vida não bate os 70 anos e onde o mercado de trabalho considera descartáveis, por gastas, as pessoas com mais de 45 (tente arrumar um emprego, carteira assinada, depois de tão comprometedora faixa etária!), a afirmação da velhice soava quase como uma provocação, um manifesto político.

Papai morreu em seu quarto, serenamente, cercado pelo carinho e o apoio de filhos e netos, afagado e beijado no rosto, nas mãos, nos braços, nos pés; recebendo a nossa força e nos transmitindo a força que a sua presença sempre foi capaz de transmitir (mesmo frágil, como naquele momento). Morreu acompanhado por uma equipe de enfermagem que ultrapassou os limites profissionais (a “mãe” Márcia, a suave Simone, o sereno Roberto, o emocionado Carlos).

Parceiros até o último instante, estivemos ao lado dele como ele esteve sempre ao nosso lado, em quaisquer circunstâncias; a dor da perda “compensada” pela certeza e pelo privilégio de ter compartilhado a vida com uma pessoa e um pai admiráveis, que nos deixa a melhor das heranças: a lição da solidariedade, da amizade, do respeito, da integridade e de muita doçura. 

No dia 25 de maio, meu aniversário, recebemos a visita dos queridos amigos Fritz Utzeri e Liége, conversamos sobre o estado de saúde de papai, sobre a possibilidade de uma campanha de apoio financeiro a ele e família. Lembro de uma observação de Liége: a Constituição Brasileira, que garante o direito à vida, deveria também garantir o direito à morte. Certamente, doce amiga. Mas, se nem à vida (tão exaltada) o país tem permitido o acesso à totalidade (ou, vá lá, à maioria) de seus filhos, o que dirá à morte, tão temida e estigmatizada, geralmente confinada ao silêncio. Única certeza absoluta da vida, a morte, ironicamente, costuma ser assunto que a conveniência recomenda evitar, como se fosse vergonhoso morrer.

Vivemos intensamente esse encontro inevitável nos últimos cinco meses, papai já em internação domiciliar, a saúde lentamente se deteriorando pelo enfisema pulmonar construído em mais de 60 anos de tabagismo. Visto de longe, pode parecer apenas um período doloroso, triste, corroído por doença, contaminado e contagiante. Saibam que não. Apesar de tudo, há espaço para a alegria, a piada, o riso. Já em “Morte e Vida Severina”, João Cabral de Mello Neto ensina que é a vida que contamina a morte. Uns 10 dias antes de morrer, papai teve uma crise violenta, beirou o fim. Acordei com esse quadro e, claro, nem pensei em pentear o cabelo, lavar o rosto, me ajeitar. Fiquei a seu lado, ajudando no possível. Finda a crise, tranquilizado, refeito, ele me olhou e exclamou com um sorriso sacana: “mulher, você está horrorosa! Você já cuidou de mim; agora, vá cuidar de você, que está horrível. Faz mal de ver”. 

Papai não perdia uma piada! É como ele bem disse no poema autobiográfico “Eu, Lago Sou”: “e rindo como poeta, que o riso é minha saúde, fiz da alegria meta, fiz da esperança virtude”.

O ensinamento vale para os que não entenderam uma despedida regada a samba e cerveja (houve quem achasse uma heresia!). Fiéis a uma antiga tradição, a boemia (por favor, sem o acento, que papai detestava) e o samba continuam “bebendo” e cantando os seus mortos. É a homenagem que prestam. Nascemos navegando na água; partimos pranteados em cerveja (lembro o discurso indignado de Zeca Pagodinho diante da falta de cerveja gelada nas redondezas do São João Batista, onde nos despedíamos de João Nogueira: “vocês sabem quem está sendo velado aqui? Um grande sambista! Por isso é que eu gosto de Xerém; lá, nunca faltaria cerveja gelada na despedida de um homem como o João!”)   

Claro, nem tudo foram flores (em vida, sempre, por favor). E o mais difícil, talvez, seja o imposto pelas necessidades financeiras. No projeto da Liége, certamente o direito à morte incluiria a cobertura total dos gastos médicos, que daria tranquilidade aos doentes e às famílias. Todos sabemos que não é assim – nem para os ilustres, infinitamente menos para as chamadas pessoas comuns. Lentamente, as dívidas se acumulam, invade-se o limite do cheque especial, a política de juros exorbitantes manifesta-se da forma mais doméstica.

Pelas regras dos planos de saúde (saúde?!), tudo é bem “normatizado”.
Mas isso são outros 500, mesmo. Mudar essa realidade exige mudar um projeto político construído ao longo dos últimos 500 anos nesse país, e esse é assunto para uma outra hora.

Obrigada a Fritz, Liége, Chico Caruso, Millor Fernandes, Alfredo; obrigada ao gari e aos três rodoviários anônimos que, na madrugada de 31 de maio, interromperam o trabalho, entraram no Teatro João Caetano, fizeram a sua discreta homenagem a papai e prosseguiram na luta pela vida; obrigada aos atores, compositores, escritores, jornalistas, cantores e colegas de todas as profissões que estiveram e estão ao nosso lado; obrigado aos companheiros do PT, que permanecem brigando pela reparação de arbitrariedades que papai continuou sofrendo mesmo com o final da ditadura; obrigada aos alunos e professores do Colégio Pedro II; obrigada aos famosos e anônimos que deram e dão o seu apoio de tantas maneiras; obrigada a médicos e enfermeiros; obrigada, Velha Guarda da Mangueira. 

Apesar de sambista e ateu convicto, uma das músicas que papai mais amava era a francesa "Hynne a l'Amour". Os versos finais sempre o emocionavam: “se um dia, a vida a chamar, se você morrer e for para longe de mim, pouco me importa, se você me ama, porque eu morrerei também. Nós teremos, para nós, a eternidade, no azul da toda a imensidão. No céu, livre de problemas, Deus reúne aqueles que se amam". Com certeza, ele e mamãe estão agora de mãos dadas, recuperando os últimos cinco anos de distância.

Rio, 5 de junho de 2002
Graça







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